quarta-feira, setembro 26, 2007

Vencer pelo cansaço

Já uma vez tive oportunidade de aqui comentar o novo lema do prestador de bens e/ou serviços, nos quais incluo o Estado. A tradicional expressão "o cliente tem sempre razão", deu lugar a "ele há-de desistir e acabar por aceitar as coisas como são".
Todos nós temos um exemplo desta última expressão, mas nem todos temos um exemplo da primeira. Começa nas pequenas coisas: um preço abusivo, a um funcionário que não cumprimenta as pessoas. Não é nas grandes coisas que nos cansam, é nas pequenas. É como se fosse um aquecimento para o que ainda está para vir.
Como disse em cima, facilmente nos deparamos com pequenas coisas que nos atazanam o juízo. São essas pequenas coisas que servem para nos levar ao desespero. Um problema simples aqui, outro ali, outro mais à frente. Se inicialmente as pessoas se sentem com vontade de reclamar pelos seus direitos, quando se juntam vários "pequenos problemas" o cliente/público acaba por desabafar e pensar "não tenho paciência, deixa estar assim como está".
Tudo isto é feito com desprezo pelo beneficiário dos bens/prestação. Antigamente, um olhar torto por parte do cliente levava a uma reforma completa por parte da origem. Hoje, até para reclamar ouvimos, como eu já ouvi, "reclame à vontade, que isto nem sequer é meu. Sou só um funcionário, para mim é igual". Depois, para reclamarmos, temos que o fazer por escrito, sendo que essa reclamação vai directamente para quem supervisiona a actividade em causa. Desesperante se torna a situação quando recebemos cartas em casa, por parte dessa entidade, a dizerem que agradecem a reclamação, mas não são a entidade competente para analisar aquela questão.
Se contactamos directamente quem pode agir nas questões, mesmo tendo sido gravemente prejudicado, o cliente/beneficiário é obrigado a fazê-lo por escrito, a gastar dinheiro em cartas e avisos de recepção e a aguardar uma eternidade para que passem os dias exigidos por lei para que a origem dê uma resposta. Devemos contactar telefonicamente, voltar a escrever tudo e enviar para outra entidade, e quando damos conta já passaram meses. Entretanto, se estivermos a ser gravemente lesados, não há nenhuma medida cautelar para questões, por exemplo, que envolvam 10, 20 ou 50 euros. Ou seja, o cliente paga 10 euros daqui, perde 50 euros dali, é obrigado a pagar 30 euros noutro lado, até que tudo se resolva. Aos poucos, vais sendo maltratado por funcionários mal educados e incompetentes, vai gastando dinheiro de coisas que lhe são exigidas injustificadamente, e os tribunais, caso chegue a este limite, ainda considera as entidades "com competência, dado o seu prestígio no mercado" e avaliam os factos, não em função do caso concreto, mas em função do todo.
Aos poucos, o tempo passa, o cliente gasta dinheiro, desespera ao ter que enfrentar a burocracia, e a resposta a dar, perante tudo isto, é fácil: "é melhor deixar estar tudo como está e não me chatear mais". Tudo isto traduzido dá qualquer coisa como "vencer pelo cansaço". É este o novo lema do prestador de bens e/ou serviços. É um pequeno problema aqui, outro ali, e que leva ao desespero milhões de consumidores, sem que se tenha solução à vista. E assim, sem querer, os portugueses aumentam a probabilidade de ataques cardíacos, crises de ansiedade, esgotamentos e depressões: o desespero que temos ao nos sentirmos impotentes para enfrentar "pequenas coisas", leva, sem que ninguém dê conta, a situações de aumento de stress. Esse stress acaba por gerar sentimentos de fúria ou de desespero face à impotência que se sente por não se conseguir resolver as coisas em tempo útil, ou da forma que, por vezes, sabemos que é a mais justa.
Já repararam como pequenos problemas, coisas insignificantes, acabam por destruir a nossa vida? Quer acreditem, quer não, praticamente todos os portugueses se deixam inflamar, ainda que inconscientemente, pela "raivinha", pela "furiazinha", e pelo "ter que respirar fundo e contar até 10 para acalmar". Mais grave é quando estas pequenas coisas se arrastam para a nossa restante vida pessoal e nos dizimam o pouco que ainda possamos ter de bom.

3 comentários:

João Gomes disse...

http://aquelaopiniao.blogspot.com/2007/09/o-mito-do-acesso-ordem.html

Tu que andas smp a dizer mal do governo vê isto ;)

Luís Rocha disse...

Exactamente DJ!

Por isso � que devemos usar os meios de reac�o quando somos efectivamente lesados e n�o por birrinhas e necessidade de autoafirma�o.

ATG disse...

Ainda bem que me dá razão Luís Rocha.