quinta-feira, abril 30, 2009

Da gratuita instrumentalização de Abril em nome do corporativismo




“Quem quer garantir a própria liberdade, deve preservar da opressão

até o inimigo; pois, se fugir a esse dever, estará a estabelecer

um precedente que até a ele próprio há-de atingir".


Thomas Paine




No passado dia 27 de Abril, Mário Crespo escreveu um artigo de opinião no Jornal de Notícias em que acusa José Sócrates de processar jornalistas que escrevem textos com os quais não concorda.

Mário Crespo afirma expressamente que José Sócrates controla a justiça em Portugal e que, caso estes processos movidos contra jornalistas conheçam o seu desfecho antes do caso Freeport, tal só pode constituir uma prova irrefutável de que o governo condiciona de forma ditatorial a informação publicada no País.

Não posso ficar senão atónito perante este texto, atenta a contextualização abusiva dos processos em causa e do papel atribuído a cada interveniente e, bem assim, da distorção de conceitos legais e hierarquias de poder, que não se pode crer inocente. Vejamos:

Já há mais jornalistas a contas com a justiça por causa do Freeport do que houve acusados por causa da queda da ponte de Entre-os-Rios. Isto diz muito sobre a escala de valores de quem nos governa.

Chegar aos 35 anos do 25 de Abril com nove jornalistas processados por notícias ou comentários com que o Chefe do Governo não concorda é um péssimo sinal. (…) Se os processos contra jornalistas avançarem mais depressa do que as investigações do Freeport, a mensagem será muito clara. O Estado dá o sinal de que a suspeita de haver membros de um governo passíveis de serem corrompidos tem menos importância do que questões de forma referentes a notícias sobre graves indícios de corrupção. Se isso acontecer é a prova de que o Estado, através do governo, foi capturado por uma filosofia ditatorial com métodos de condicionamento da opinião pública mais eficazes do que a censura no Estado Novo porque actua sob um disfarce de respeito pelas liberdades essenciais
.”

Em primeiro lugar, e segundo o jornalista Mário Crespo, estamos obrigados a olhar o processo judicial que nasceu da tragédia de Entre-os-Rios como o nosso indexante numérico para deduzir queixas contra quem viola qualquer direito legalmente consagrado. Haverá tantos cidadãos a contas com a justiça quantos os arguidos de Entre-os-Rios. Quem não respeitar tal indexante não respeita a tragédia em causa nem tampouco pode amar o 25 de Abril.

Ora, não é inocente esta escolha do jornalista que traz aqui um exemplo de não justiça, um caso que reconhecidamente envergonha quem promove a acção penal – lembre-se que não é o Governo, cujos poderes se encontram constitucionalmente separados daqueles.


Por outro lado, não pode deixar de se sublinhar o tom corporativista da frase “nove jornalistas processados por notícias ou comentários com que o Chefe do Governo não concorda”.

Quer o autor do texto dar a entender que os processos movidos por Sócrates se baseiam em delito de opinião ou numa mera discordância com o que foi escrito ou divulgado via televisiva, configurando essa iniciativa uma forma de censura. Moles e invertebrados deverão ser estes novos intervenientes na vida pública quando até o exercício de um direito poderá ser tido como censura.

Nesta óptica, os jornalistas inserem-se numa categoria que permite a isenção perante a lei, no exercício de um direito fundamental - liberdade de opinião - de forma aparentemente irrestrita, independentemente de o mesmo colidir com outros direitos constitucionalmente consagrados.



É a concretização da ideia de que a verdade se materializa na pena de cada jornalista e que estes podem ser ofendidos mas nunca ofensores (veja-se, p. ex., que a TVI e dois dos seus jornalistas irão processar o primeiro-ministro por se sentirem “lesados” quando este manifestou a sua opinião num outro órgão de comunicação).

Quem invoca o 25 de Abril de forma tão veemente, deveria ter em conta que a violação sistemática de disposições legais (violação do segredo de justiça, do direito à honra, do direito ao bom nome, do princípio da presunção de inocência, entre outras) não é admissível num Estado de Direito, até à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

A imprensa livre é um dos valores fundamentais de uma democracia saudável mas quem invoca o 25 de Abril não pode confundir imprensa livre com uma imprensa irresponsável e acima da lei. Este princípio vale para todos os cidadãos, representem ou não um órgão do Estado, estejam acusados ou sob mera suspeição.

Por outro lado, comparar a tramitação do caso Freeport com a tramitação de um processo por difamação encerra uma manipulação demagógica e perigosa. Basta pensar nas diligências necessárias em sede de inquérito necessariamente diversas em ambos os casos - o número de provas a recolher, as testemunhas a ouvir, os volumes de documentos a analisar - para se perceber a incongruência de tal paralelismo.

No entanto, o jornalista Mário Crespo afirma que, no caso de a tramitação do Processo Freeport não for mais célere que os restantes processos, tal constitui a “prova de que o Estado, através do governo, foi capturado por uma filosofia ditatorial com métodos de condicionamento da opinião pública mais eficazes do que a censura no Estado Novo porque actua sob um disfarce de respeito pelas liberdades essenciais.”

Esta ideia de que o Governo manipula activamente o Processo Freeport é contrário à leitura intuitiva e empírica que qualquer observador distanciado faria do caso – veja-se que estamos a falar de controlo e não de eventuais tentativas de pressões que deverão ser denunciadas caso se determine a sua existência e real extensão.

Basta ver que as diligências processuais que, em tese, implicam José Sócrates são realizadas em catadupa em momento de eleições, quando mais o podem ferir. Isto para não falar da arquitectada génese do processo Freeport, em que um órgão de investigação criminal se reúne com chefes de gabinete de políticos concorrentes de Sócrates e denunciantes que não o querem ser, para dar início a um processo.

Será a isto que se chama um due process of law?

Confundir o Estado com o Governo e pretender, de forma arruaceira e maniqueísta, que este último controla a justiça só pode ser lida como uma conclusão de que o Governo deverá ser responsabilizado sempre que a justiça que emerge dos tribunais não coincide com a justiça plasmadas nas capas dos jornais.


É grave e de lamentar que Mário Crespo escreva que “o Primeiro Ministro do décimo sétimo governo constitucional fica indelevelmente colado à imagem da censura em Portugal, 35 anos depois de ela ter sido abolida no 25 de Abril”, usando gratuitamente uma imagem extremista e utilizando um termo que sabe causar alarme – “censura” – para esconder um mau estar perante a necessidade da classe jornalística respeitar a lei.

É com desconforto que assisto a esta instrumentalização do 25 de Abril protagonizada por alguém que me habituei a respeitar, especialmente usando como veículo uma miscelânea de ideias que conduzem tão somente a um ideal corporativista e isolada do jornalismo.

Ainda estou incrédulo que, da leitura do texto em causa, apenas possa concluir que o autor não quer nem defende a liberdade para todos; mas tão somente toda a liberdade para a sua classe.

E 35 anos depois do 25 de Abril, tais factos não podem deixar de se assinalar.

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