domingo, fevereiro 18, 2007

Sigilo Profissional: Sim ou Não?

É mais um tema que cria grande celeuma na nossa sociedade. O sigilo profissional é um tema que nos últimos dias tem sido debatido não só pelo caso do Tribunal da Relação que ordenou o levantamento do sigilo profissional ao médico da tal prostituta contaminada com o vírus da SIDA, mas também porque ontem nós, advogados estagiários inscritos na 1.ª fase, tivemos o exame da Ordem dos Advogados de Deontologia Profissional e Organização Judiciária, no qual se fala de Sigilo Profissional vezes sem conta. Na Ordem dos Advogados, o Sigilo Profissional é sagrado. Tudo o que seja "contar", "expor", "abrir a boca", é um assunto muito delicado e praticamente tudo está sujeito a sigilo profissional. Ao contrário dos jornalistas, nos quais o sigilo profissional só abrange as fontes, nos advogados abrange tudo, até mesmo cartas entre colegas e profissionais. É um assunto muito delicado e que só pode ter o seu levantamento com autorização da OA. Em caso de conflito de instruções (o Tribunal ordenar que está levantado o sigilo profissional e que deve falar, e a OA disser que não) o advogado deve seguir as instruções da OA e não as do Tribunal.
Concordo com o sigilo profissional. Já pensaram no que poderia ser os advogados e outros profissionais de outros ramos andarem por aí a expor dados pessoais de clientes a seu bel prazer? Desde uma simples conversa de café, a blogues (por exemplo), passando por outros locais. Se não existisse sigilo profissional, a relação de confiança cliente/profissional seria nula, começando os clientes a pensar no que poderia acontecer se dissessem que tinha furtado o objecto x, que tinha burlado o y, que tinha contaminado o z. Acima de tudo, a exposição a que ficariam sujeitos seria uma autêntica violação da sua intimidade, algo a que têm direito. Tal poderá também afastar, como é o caso, os doentes da vigilância médica, porque não há confiança no médico que a qualquer altura poderá ter que contar a alguém que a pessoa A está contaminada com o vírus do HIV desde a data B.
No caso do Tribunal da Relação que ordenou que o sigilo profissional fosse quebrado para que a dita médica desse informações sobre a prostituta, a minha opinião é favorável a esta instrução e nenhuma Ordem se deveria opor a estas instruções. O que está aqui em causa, é uma mulher que era prostituta e que, de repente, decidiu andar a ter relações sexuais com os clientes, sabendo que tinha SIDA, não se importando se os outros homens pudessem apanhá-la ou não. É tentador dizer que é merecido para esses tipos, serem contaminados com o vírus da SIDA por terem relações sexuais sem preservativo. No entanto, não devemos ceder à tentação. Muitos desses homens são casados e vão para casa ter relações sexuais com esposas que não têm culpa dos maridos serem o que são e que quando derem por isso também elas estão contaminadas. Ainda que assim não fosse! O que está aqui em causa é um acto doloso, de pura crueldade, de uma pessoa que decidiu contagiar dezenas ou, quiçá, centenas de pessoas com uma doença que é mortal!
Creio que neste caso, o interesse público é superior ao direito à privacidade e intimidade de que a prostituta, enquanto paciente da médica x, goza. Aqui o sigilo profissional deve ceder aos interesses públicos, nomeadamente no que toca à saúde pública. Temos aqui o tal conflito de interesses entre a confidencialidade e o perigo para a saúde pública, e neste caso, creio que devemos ter em atenção ao 2.º, porque a mulher supostamente contagiou, dolosamente, várias pessoas com o vírus do HIV.
Neste caso, a prostituta contagiou os homens, sabendo que tem o HIV e sem que eles soubessem disso, sendo a minha opinião a que dei acima. No entanto, no caso da prostituta informar o cliente que tem HIV, e o cliente aceitar ter relações sexuais com ela, ou até sugerindo (como são muitos casos) praticar essas relações sem preservativo, aí a prostituta já não deve ter qualquer responsabilidade perante a justiça e já nem se deve falar, sequer, de sigilo profissional, porque a situação volta a ser como qualquer outra. Aí, o dever passa recair sobre o cliente da prostituta. Poderão dizer-me que, mesmo com consentimento e proposta do cliente, a prostituta não poderia ter relações sexuais com ele. Atento os mesmos para o disposto no artigo 38.º do Código Penal, no qual é referido o seguinte:

Artigo 38.º
Consentimento

1 - Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes.
2 - O consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, e pode ser livremente revogado até à execução do facto.
3 - O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 14 anos e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta.
4 - Se o consentimento não for conhecido do agente, este é punível com a pena aplicável à tentativa.

Aplica-se ainda a regra especial do artigo 143.º, número 1, ou seja, uma ofensa à integridade física simples, por ofensa à "saúde de outra pessoa". Poderá ser também considerado o 144.º, alínea d), mas acho que aqui já é mais discutível, tendo que se chegar à conclusão se o perigo para a vida é imediato, mediato, ou inexistente (há casos de sorte de pessoas que têm relações sexuais com pessoas contaminadas pelo HIV, sem protecção, sem que saiam contaminados).
Poderia ser punido também por aqui, o tal exemplo que dei. No entanto por aplicação do artigo 38.º e do 149.º do Código Penal, se houver consentimento, a integridade física considera-se livremente disponível, desde que não contrarie os bons costumes. Como vêem, a questão é discutível. Muito discutível.
Mais discutível ainda é o sigilo profissional que, na minha opinião, deve ser avaliado casuisticamente, e não abstractamente. Acho que aqui, tal como em algumas coisas na vida, o sigilo profissional e seu respectivo levantamento, só podem ser vistos caso a caso, e mesmo esses casos podem apresentar especificidades (como é este) em que dois casos semelhantes podem ter censurabilidades diferentes no levantamento do sigilo profissional. Porém, neste caso, o sigilo profissional deve ser quebrado!

2 comentários:

Persona Naturale disse...

Muito interessante este post.
Totalmente de acordo contigo Alex.

Bjinhos

FFC disse...

Só não concordo com uma coisa! Não se aplica o 38º C.P. porque ofende os bons costumes... disso não tenho dúvida, quanto ao resto estou de acordo.