sexta-feira, agosto 18, 2006

O estudante

Os livros nunca aparecem em cena, e os erros de ortografia abundam

Há muitos muitos anos existia uma palavra chamada estudante. Era uma palavra com prestígio e dignidade e significava e encerrava um conjunto de qualidades perdidas. Esforço, atenção, concentração, trabalho, mérito, afirmação da personalidade e da inteligência. Uma pessoa, não necessariamente um adolescente ou um jovem, estudava para melhorar o seu mundo mental e para melhorar o mundo físico à sua volta. O estudo era um método de auto-aperfeiçoamento, muito antes de auto-aperfeiçoamento significar apenas a cirurgia estética do corpo e da cabeça, ou o retoque cosmético da notoriedade. Auto-aperfeiçoamento tem hoje a ver com dietas e alimentações naturais, massagens e maquilhagem, técnicas de percepção e de privação destinadas a tornar o comum dos mortais um imortal e, mais do que isso, um imortal saudável. Neste sentido, ler um romance de Dostoievski, ouvir uma cantata de Bach, assistir a uma peça de Ibsen, admirar uma tela de Tintoretto ou apreciar a arquitectura da Bauhaus são exercícios mentais de auto-aperfeiçoamento que caíram em desgraça e duvida-se que venham a ser recuperados. São exercícios que foram substituídos pelo shiatsu, a dieta Atkins, o transplante capilar, a meditação transcendental, o ginásio, a lipossucção e, de um modo geral, a tremenda obsessão pelo físico que caracteriza as sociedades de abundância e bem-estar. Os custos de manutenção mensal destas actividades destinadas a converter os quarentões e cinquentões em cópias do David de Miguelángelo e da Vénus de Milo (com bracinhos) enriquecem os provedores dos serviços e empobrecem a carteira do aspirante à perfeição. Os «tops» de não-ficção do «New York Times» passam semanas a fio ocupados com livros que relatam o modo mais fácil e rápido de deixar o neurónio em paz. Na verdade, tudo o que hoje solicite esforço e atenção, e faça trabalhar o atrofiado músculo cerebral, é posto de lado com a rapidez do raio e considerado um ornamento de uma elite intelectual dada a manias e ares de culta. O computador e a Net, com a informação digerida e vomitada em segundos, ajudam a este estado de coisas, completados pela televisão anestesiante e o telemóvel como modo unívoco de comunicação.
Neste planeta vivemos e viveremos, e vivendo bem, se compararmos com a maioria do mundo, os oitenta e tal por cento que vivem mal e muito mal, incluindo os que sobrevivem e subvivem. E, neste planeta tecnológico, a palavra estudante, que ainda se usava por volta dos anos 70, caiu em desuso. Desapareceu, mudou-se para outras paragens. Só ouvimos falar em estudantes quando um grupo de fedelhos sem causas maiores anda por aí com cartazes e jeans de marca registada a clamar não ter dinheiro para as propinas, tentando que a gente trabalhadora os leve a sério. No meu tempo, muito in illo tempore, a porta da universidade não tinha um carro e contavam-se pelos dedos os meninos que andavam de carrinho. Hoje, o adolescente exige aos pais, assim que atinge a maioridade, o seu automóvel como antes exigira o seu telemóvel. Não sobra para as propinas. Dantes, os pais e os professores exigiam coisas aos filhos, que estudassem e se aperfeiçoassem, senão iam trabalhar e deixar de vadiar. Hoje, a proposta inverteu-se e são os filhos que exigem a mesada e a cerveja gelada, o CD e a sapatilha, cama, mesa, pensão de alimentos e roupa lavada. O estudante, incluindo o estudante de café, sumiu-se, devorado pela sociedade de consumo, e é raro ver passar na rua um rapaz ou uma rapariga carregando um pacote de livros, uma pasta recheada de papéis, um objecto que o identifique como estudioso e não como comensal da universidade, com direito a cantina e estudo acompanhado. Os estudantes identificam-se pelo apego a capas e batinas com rótulos de hotel colados no tecido e grandiosos projectos de bebedeiras e queimas das fitas. De resto, os livros nunca aparecem em cena, e os erros de ortografia abundam. Uma variação muito estimável do estudante, o estudante-trabalhador, está praticamente extinta, visto que os pais sustentam os filhos até aos 30 anos.
Estas considerações vieram-me à cabeça no Brasil, donde escrevo. Na metrópole de São Paulo, as paragens de autocarro estão cheias de homens e mulheres, adultos, carregando livros depois das horas do trabalho. Eis o estudante-trabalhador em todo o seu esplendor, ou melhor, o trabalhador-estudante, fazendo o sacrifício imenso de se sustentar e de sustentar o seu auto-aperfeiçoamento correndo para a escola depois do emprego, com a pasta pesada dos livros entendidos como a oportunidade de mudar de vida, de sair da pobreza. Negros e mulatos a maioria, muitas mulheres, perfiladas no seu posto de aprendizagem, vestidas com modéstia, aguardando o transporte para a escola, longe do trabalho. São Paulo abriga mais de dezasseis milhões de habitantes, quase o dobro da população de Portugal. Eu estimo este espectáculo da hora de ponta, acho comovente o esforço, o mérito, a obstinação de sair da mediocridade sendo estudante. Eis a escola recuperada. A escola vivida não como sinónimo de boémia e activismo frustre e sim como lugar de privilégio e custo, que é preciso respeitar e aproveitar por ser cara, difícil, distante, por ser um trampolim para o céu. Há muito tempo que eu não via estudantes, e ver estudantes, trabalhadores-estudantes, fez-me lembrar o que é estudar e trabalhar. Em Lisboa, é tão raro ver alguém a ler um livro no comboio ou no metro, é tão raro ver alguém a ler um livro no café ou no restaurante, é tão raro ver alguém a estudar. Substituímos a educação dos adolescentes e adultos pela televisão, e nos restaurantes e snacks (que deram cabo dos cafés e leitarias), são as televisões que ocupam o espaço físico e mental disponível, palrando o dia inteiro a sua indigência e propagando o princípio da abolição do esforço e da perfeição. Vença na vida, concorra a um concurso, tome-se «top model», jornalista, apresentador(a) de televisão. O recrutamento faz-se nas profissões dos «media» e do acesso imediato, consideradas mais brilhantes do que a longa paciência do génio e da investigação. Geramos seres informados e ignorantes, a não ser que a sua classe social lhes permita o acesso e os oriente pelos corredores da cultura e do conhecimento. Os pais, a família, o meio. O trabalhador-estudante foi-se. Há quem chame a isto progresso.

Autor: Clara Ferreira Alves

4 comentários:

EuMulher disse...

Em muita coisa concordo realmente com o que esta escrito. Mas, e é logico que assim seja, fiquei triste por ver o shiatsu mencionado ao lado de dietas, tansplantes capilares e afins.Coisas completamente distintas. O shiatsu pode ate ser uma terapia recente, mas esta baseada em certos pontos da medicina tradicional chinesa que tem milhares de anos.Pode ate haver uma obsessao pelo físico mas o shiatsu nao se preocupa so com a parte fisica e vê o ser humano como um todo. Não entendi se a pessoa é de origem brasileira.É que nesse caso eu entendo que certas terapias podem até nao ter a credibilidade que deveriam ter. Existem muitas mudanças na raça humana e penso que, um pouco devagar é certo, as pessoas começam a tomar consciência de muitas coisas o que é bom.

ATG disse...

???

EuMulher disse...

Qual a dúvida? Escrevi assim algo tão descabido?

Funafunanga disse...

Este texto da Vagina Capciosa da Pluma Caprichosa já é antigo. Em Setembro de 2004 escrevi no bloque que na altura tinha(www.pomboincontinente.blogspot.com) uma carta aberta à autora, que agora reproduzo na íntegra:

Caríssima Clara Ferreira Alves,

Sempre te achei uma intelectual petulante. No entanto, ontem li a tua crónica na revista do Expresso e quase me vieram as lágrimas aos olhos, quando lamentavas o suposto desaparecimento da figura do “estudante”, e nos criticavas a nós, seu fraco sucedâneo hodierno.

Creio que, em nome da minha geração, te devo um grande pedido de desculpas. Desculpa-me, Clara Ferreira Alves, por não trazer debaixo do braço, no metro, um exemplar de um romance do Dostoievski como backstage pass para as luzes da intelectualidade. Desculpa-me por abominar música barroca, por não fazer ideia dos títulos que ocupam os tops de não-ficção do New York Times e por não ler o New York Times, por não utilizar o termo “in illo tempore” nas minhas conversas habituais, por não ter uma coluna semanal na revista do Expresso (eu bem enviei o meu Curriculum, para te substituir, mas eles não quiseram), por não ser director da Casa Fernando Pessoa. Desculpa-me por não trabalhar nas obras durante o dia para sustentar os estudos em horário nocturno, por não ter participado na revolta de 62, no Maio de 68 e na revolução de 74 (teria tido todo o gosto, caso fosse nascido na altura).

Por tudo isso e muito mais, curvo-me perante ti, ó Pallas Atena da intelectualidade lusa, e rogo o teu perdão pela parte que me cabe desse teu tão grande desgosto com as novas gerações.
Contudo, se tanto te repugna que o auto-aperfeiçoamento moderno signifique apenas “a cirurgia estética do corpo e da cabeça, ou o retoque cosmético da notoriedade”, como dizes, porque não começar por dar o exemplo aos jovens, enxaguando hoje mesmo dessa cabecinha (bem-pensante, seguramente) essa cor loira artificial da moda?

O teu “fã”,

O Pombo